sábado, 18 de abril de 2009

Prosa ao sabor da vida


Memórias da Escola: entre festa e trabalho


Era Páscoa, 1994. Bateu à porta da sala do Conselho Executivo e entreabriu-a, percebendo que havia licença para colocar um pé dentro, mesmo sabendo-se, por ali, desconhecida.
- Boa tarde… sou professora de História e queria informar que concorri para esta Escola e que conto vir para cá… portanto, venho tentar conhecer um bocadinho do que aqui se passa, se puder ser…
- Ah, sim? – perguntou o professor Maia, esperando, sorridente, como se nunca tivesse estado numa situação destas. – E de onde vem a colega? – continuou.
- Estou ali em cima, na Secundária, mas não estou bem… E, como diz o ditado, “quem não está bem, muda-se”, estou a tentar fazer isso. E só concorri para esta Escola, que sei que é a primeira vez que abre concurso para terceiro ciclo...

Aquela professora sempre ficara colocada na primeira escolha dos seus poucos concursos: quatro anos na C+S da Ilha Terceira, Praia da Victória, sete anos na Secundária do Alto da Damaia, Amadora, dois anos na Secundária de Barcelinhos e agora… contava descer para junto do rio, onde o espaço era convidativo, aparentemente sem muitas paredes que impedissem o ar livre e também, achava, as ideias, de circularem livremente.

Assim foi. Aquele Setembro reforçou-lhe a esperança de ficar bem.
Primeiro, aquele espaço amplo, de uma Escola em pavilhões afastados uns dos outros, com espaços interiores melhor ou pior ajardinados, com declives de terreno sempre a tentar ter arbustos, que as crianças constantemente pisavam, as passagens cobertas com telhas ondulantes que de pouco serviam se a chuva vinha atravessada, e uma distância enorme entre o terceiro pavilhão e a sala dos livros de ponto e do encontro de professores e do café, o que permitia quase esquecer o cansaço entre uma aula e a seguinte.
Actividades curriculares e extra-curriculares, convívio aberto entre o pessoal docente e não docente e… a porta do Executivo sempre aberta, menos na horita de reunião semanal. Tudo isto era um grande alívio para aquela Professora nova que acabava de se instalar, julgava ela, definitivamente.

Primeiro jantar de Natal. Um espanto grande nos seus sentidos todos. Duas filas de mesas lá em cima, na cantina, com um espaço largo entre elas. O jantar, o saco de linho cheio de prendas para a troca, o Pai Natal, que era o Presidente, que diz meio provérbio para que alguém levantasse um papelito com a parte que o completasse e fosse a correr receber a sua prenda… E foi assim em muitos jantares de Natal.
Quando parecia que o ambiente estava a ficar frio – se é que isso pode acontecer nalgum jantar de Natal! – a Professora desta história estranhou que alguns carolas, daqueles mais “entrados” na Escola, tipo professoras Augusta Carvalho, Manuela Real, Georgina, e outros, começassem, sem mais nem para quê, a bater com os punhos cerrados nas mesas, obrigando os pratos já vazios a saltitarem levemente, fazendo um tlim-tlim entre eles mesmos e os talheres sujos de bacalhau e de mexidos, e um tlim-poc à medida que, saltitando, se chegavam mais para as beiras das mesas, ameaçando caírem ao chão se aquilo não parasse. E demorou. Demorou. Até que, aparentemente contrariado, mas visivelmente feliz, o Presidente salta para o espaço entre as mesas, logo seguido de outro, igualmente possante e roliço, e hirtos, braços colados ao corpo, cabeça fixa e imóvel sobre os ombros, lá bambolearam ao ritmo do tum… tum… tum-tum-tum…, tum…tum… tum-tum-tum dos tamborileiros, que as mãos dos profes fazim, ao bater nas mesas, e que o tlim-tlim dos pratos vazios e dos talheres acompanhavam. Foi um espanto de sintonia entre todos, foi como que a abertura das festividades. Depois, muitos os foram acompanhar naquela e noutras danças, que os cavaquinhos e as violas, os tambores e algumas gargantas estavam sempre prontos a funcionar.

E foi tanto assim que aquela Professora nova julgou poder ser agora o momento de instalar na Escola um grupo folclórico e etnográfico, como há muito sonhava conseguir em qualquer sítio onde parasse. Foi ter com o pessoal, desde os cantores aos tocadores. Riu-se dela o Sr. Cardoso, chefe do pessoal:
- Na Banda Plástica? Ó Professora, aquilo… a gente não toca nada! Só tocam os quatro da fila do fundo… Os outros têm aqueles aparelhos grandes, mas são de plástico, é só para fazer vista… A gente não toca nada… São umas gaitinhas que aquilo tem dentro, e nós apitamos, mas é só para entreter meninos…
- Então não toca mesmo nada, nem trombone, nem saxofone, nem viola, nada?!
- Nadinha, Professora.

E contadas as vozes, que ainda seriam suficientes, e os instrumentos, que se resumiam a um ou dois cavaquinhos e uma viola, que contavam ir mudando de Escola em Escola, até ficarem bem, a Professora desistiu daquela ideia fantástica. Estamos em crer que, se a Escola da Ministra Lurdes Rodrigues não fosse tão impossível de cumprir, mediante os normativos em vigor, seria agora um bom momento para dar andamento ao sonho do grupo folclórico… Pelo menos, com professores por quatro anos, talvez fosse possível organizar um grupo desses, ainda que, de quando em quando, renovável. Quem pega na ideia?

Muitos Natais se seguiram, sempre cheios de vida, e também vários Carnavais, estes, com filas infindáveis de mascarados, que saíam da Escola para irem integrar os cortejos carnavalescos que a Câmara Municipal organizava. Era toda a Escola! E, nos finais dos anos, em tempo de S.João, lá ia o segundo ciclo com arquinhos e balões, crianças vestidas com cores garridas, rendas e folhos, que as professoras levavam grande parte do ano a confeccionar! Podia-se dizer que a Escola era uma festa!

Foi neste ambiente de festa que a Escola se abriu para chamar a comunidade educativa e os habitantes de Barcelinhos ou outros para assistir a um “lançamento de livro” relativo à História de Barcelinhos, da autoria da Professora. Era Primavera de 1998. A professora Cecília preparou os seus meninos para apresentarem umas cantiguinhas populares, quer era o que melhor se enquadrava naquele momento festivo. Da mesa fizeram parte os mais directamente envolvidos na efeméride: além da Professora-autora e da sua mestre, da U.M., estava o representante da Autarquia, o Presidente da Escola (desta vez sem pose de gigantone) e o representante da Junta de Freguesia de Barcelinhos. E “Santo André de Barcelinhos. O difícil equilíbrio de uma população, 1606-1910” deu-se a conhecer ao público presente. Foi mais um sucesso desta Escola.
À parte as festas, em que a Professora participava sempre que havia uma brecha aberta para a sua participação, nas turmas cumpriam-se os objectivos fundamentais. Numas melhor do que noutras, porque os grupos de alunos colaboram melhor ou pior com as tarefas que os professores lhes têm de impor. E isto sempre foi assim.

Fizeram-se muitas experiências, muitas formações a troco de boa vontade, nada de créditos, e nasceram muitos clubes. Fez-se uma formação inovadora, para a Educação Sexual na Escola, com a participação prioritária das professoras Manuela Montenegro, Palmira Oliveira e Helena Sendim e da Professora desta história, porque estas tinham recebido, anteriormente, uma formação em Promoção de Competências Sociais, cujo método era, sobretudo, o rôle-play. Também por isso, existiu um clube de ocupação de tempos livres dos alunos, durante dois anos – o Kat-Kero – em que, simulando situações problemáticas do dia a dia, de dentro e fora da Escola, os alunos eram levados a usar o “Pára e Pensa” como metodologia para resolver os problemas, antecipando consequências de possíveis atitudes. E eram tempos de empenho e de festa.
Teatro, poesia, e tantos outros temas, eram motores que congregavam alguns alunos e professores, de forma gratuita, mas gratificante.

Mas tudo isto foi antes… antes de os horários estarem tão cheios de coisas obrigatórias, cujo valor, pode ser, em alguns casos, questionável. Antes de haver uma corrida aos moodles, aos quadros interactivos e a outras possibilidades informáticas, para cuja utilização tem faltado formação atempada e suficiente… Antes de aos alunos, na qualidade de filhos, afilhados ou sobrinhos, serem distribuídos telemóveis, play-stations, mp3 e mp4 revolucionários… Antes dos canais de televisão se inundarem de sequências infindáveis de telenovelas lamechas…
A Escola aqui continua, com os espaços verdes cada vez mais verdes e floridos, com os pavilhões, do mesmo modo, a exigirem grandes caminhadas dos professores, entre as aulas, com novos professores e órgãos de gestão, todos com as mesmas vontades e potencialidades, e com a grande pluralidade de alunos que desde sempre conhecemos.
Mas, no rosto da Professora, as rugas que vão surgindo são mais um sinal de impotência do que de velhice. Impotência para concorrer com aqueles meios de comunicação, que tiram todo o tempo aos alunos para exercerem, dentro e fora da Escola, a sua função de alunos. Impotência para levar os pais e encarregados de educação a promoverem uma educação de regras básicas de conduta capaz de servir a casa, a escola e a sociedade, em geral. Impotência para exigir do Ministério da Educação novas possibilidades de funcionamento.
Assim, à sua volta, cada vez mais os professores se sentem máquinas de cumprir horários e regulamentos, e ainda assim, obrigados a produzir sucesso educativo. O sucesso que quiserem ter!
Novos tempos virão. Na mesma Escola, com estes e novos docentes, e sempre com novos alunos, filhos de novas gerações, a Professora promete dar o seu melhor, sejam quais forem as circunstâncias. E por certo, no seu coração e à sua volta, haverá sempre festa, mesmo sem tambores e cavaquinhos.

www.eb23-rosaramalho.edu.pt/

Inês Martins de Faria, 2009

2 comentários:

Luís Miguel FIGUEIREDO RODRIGUES disse...

Passei por aqui ;-)

Laura disse...

Bem, espero que a festa dure ainda por muito tempo... incluindo tambores e cavaquinhos! Ao ler o texto lembro (com saudade, devo confessar) dos tempos em que saltava à corda ou ao elástico nesses mesmos espaços que descreve nos intervalos das aulas... de jogar à bola e até andar à pancada com os outros miúdos! Sem telemóveis nem gameboys, que só alguns tinham e até esses vinham jogar à bola!
Enfim... a culpa não será toda das play stations e dos mp3, mas com certeza os pais e encarregados de educação têm um papel fundamental. Castigar pelos maus resultados não é tirar a tv do quarto do menino e muito menos bater no professor.
Vamos acreditar e aguardar que surgem novas consciências e que a vida, sem andar para trás, pode recuperar o que de bom se perder, aliado ao que de bom se ganhou.

Beijinhos muitos e muito grandes***